segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Jeremias - Um preludio

Corria um qualquer ano, a seguir a um outro qualquer ano que antes tinha passado e antes do outro ano que estava para vir. Estavam despidas as árvores, de folhas, de ideais, as pessoas, talvez. Do inverno que ainda não estava, só havia o outono que já  brotava frieza. A aspereza do clima contrastava com a temperatura das ideias daquele tempo, tão quentes e nítidas para uns, tão frias e desbotadas para outros. Confusas, consequentemente, em actos por todos e traduzidas na linguagem do comportamentos nos dias que se seguem aos dias, puxados pela corrente da alvorada dos sóis que nascem e pelas luas que os precedem. Eram assim aqueles tempos, tão cheios de tanta coisa, tão vazios de tudo. 


A indiferença para com o tempo espalhou-se como se espalha o sangue pelas veias, não foi contudo sempre assim. Serviam-lhe em si ainda todos os sonhos do mundo, já não porém o casaco que os veste.  Com a constatação de tal, Jeremias vivia a frugal existência dos que tudo têm e nada precisam. Noutro tempo, talvez tivesse sido diferente. Noutro tempo foi diferente. Jeremias mete-se então ao caminho e segue em frente sem a hesitação dos que sabem o caminho. 

sábado, 6 de junho de 2015

Tão depressa aqui, hoje

Ainda ontem, o teu rosto, sorriso, o meu, o nosso, nós todos, antes. Sem pregas nem ornatos ainda, mas cheio dos sonhos e da vida dos de poucos anos de quem nada sabe do que não sabe e tem tudo para viver. O nosso rosto, lavado ainda com a ingenuidade de quem ainda não sabe, mas acredita. Expurgado de asperezas mas cheio de pressas, ainda com tão pouco tempo mas já sem tempo. 

Hoje, o nosso rosto, mais oxidado, com consumo do tempo já, mas ainda cheio. Mais cheio o sorriso. Não de pressa, mas de brilho. De quem não sabendo, não precisa de saber. De quem ja vivendo, não tem a mesma pressa do amanhã. A calma que permite a plenitude, a vida que começa agora a doer. A dor que arrepia o palato e permite o sabor. O tempo, cavalo, que não passa sem nos lavrar.  Mas ao mesmo tempo, ainda os sonhos e a ingenuidade. As mesmas crianças e vontades, por vezes só aprisionadas no costume do hábito. 


A vida são as escolhas que fazemos, as oportunidades que perdemos, o que não fizemos, o que nos tornamos, mas acima de tudo como vivemos tudo isso e como gerimos o que preferiríamos não gerir.  As coisas são como são, importa que se compreenda isso para que não se penalize demasiadamente a vida por não serem as coisas de outra maneira. 

sábado, 2 de maio de 2015

Jeremias, a quem vale a pena




Jeremias acorda e vê-se ao espelho. Os olhos encovados, as pálpebras cansadas e a pele que começa  a querer perder aquela firmeza inquebrável da juventude. Os olhos, à volta roxos, o pescoço mais mole, o cabelo menos ágil. Ainda, brilham os olhos, porém. Jeremias vê-se ao espelho e pergunta-se se vale a pena, se tem valido a pena, se valerá a pena. 

Jeremias quer acreditar que sim, Jeremias gosta de acreditar que sim, Jeremias precisa de acreditar que sim. Jeremias sabe muitíssimo bem que sim. No fundo, acha-se sempre que vale a pena, no fundo encontramos sempre a justificação que justifica tudo, a razão na falta de explicação. Precisa-se desse Sim, porque Sim.  As nossas rugas haveriam sempre de dar um grande filme. O lavradio da alma haveria sempre de dar lugar a um grande filmezão. 

(Mais lá no fundo não sabemos, no nossos confins não sabemos nada, nunca soubemos. Jeremias não sabe, mas segue em frente, nem sabe andar para trás). 

Jeremias disfarça a erosão com água fria e creme gordo, veste-se bem e afasta a força do pensamento com a mesma proporção de rotina. Na rua o seu olhar encontra-se com o de uma criança que corre. Entre os dois, brilhos iguais, tudo igual, apenas 30 anos de diferença. Nos primeiros, o sonho do que ainda não se é, nos segundos a certeza de que não se é. A derrota da vida em 30 anos, fosse Jeremias um actor secundário. Não fosse Jeremias confiante da estrela que ele é, e até talvez não lhe valesse a pena. Não fossem as certezas de Jeremias e talvez Jeremias não estivesse a envelhecer tão bem. Ele, que é uma estrela de cinema, a capa de uma revista. Haveriam de ver, o Jeremias lá da escola, quem diria. 


Debaixo do braço, Jeremias enrola o jornal das noticias de ontem na esperança que sejam as de amanhã e pensa no bom que é que tudo lhe valha a pena. Que infortúnio seria se não lhe valesse a pena. Sorriso gáudio o do doce da vida de Jeremias. 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Como as coisas são




Estão lá todos os dias. Todos os dias, 20 h e 0ºC, entre gente de passo alheado, apressado e com capuz invernal enfiado, estão lá todos os dias. No mesmo sítio, já não estendem o braço, mas o olhar derrotado está lá. Derrotado ou penitente, talvez de suplica. Nem sei, só sei que para além do olhar brilhante e penetrante, têm tudo o que têm no saco que os aconchega do gelo. 

Ninguém lhes liga, a vida não permite e há sempre algo e alguém que nos espera, nunca é por mal, “Se não estivesse tão atrasado até era pessoa para ajudar”, pensam e passam os poucos que olham.  Eles já não esperam nada, esperam talvez apenas que o tempo passe e a morte os leve. Talvez não, gosto de imaginar que secretamente se riem de nós e do quão ridículos somos sempre “nem aqui nem ali” e a tentar tirar mais um coelho da cartola para que nos mantenhamos incluídos. Ninguém lhes liga porque eles não existem. São fantasmas da sociedade moderna, o mal necessário da evolução, o talo da cove que não se come. Vítimas ou culpados, eles representam o que ninguém quer ver, o que não é suposto existir, a desconstrução do motivo. Ninguém lhes liga porque não vale a pena, porque não há resposta, porque os anéis se perderam e os dedos nunca existiram. Fazer o quê, se tenho o jantar o lume e o chefe é chato?

Incomoda-me o frio, a eles ainda mais de certeza, mas eu queixo-me mais, logo, pela teoria, sofro mais. Já aquecido em casa, ouço um canal de TV americano que fala vagamente da Grécia e muito concretamente de um ministro “com forte sentido de moda e com o carisma e beleza clássica da antiguidade” mas com um nome demasiado incomum para o meu palato linguístico. Olho para o tal ministro de ar rústico e para o ar sofisticado da repórter e constato que ele afinal é que é sofisticado e ela rústica, embora tenha duvidas quanto ao carisma. 

As coisas são como são, e porque haveriam de ser diferentes? Acabo a escrever este texto e a pensar para mim que na vida a importância do que somos e temos só vale para o fundamental da sociedade - a inclusão.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Sade

Numa exposição evocativa de Marquês de Sade, que forçosamente é irreverente, provocadora e naturalmente chocante, não sei o que será mais interessante. Se a a exposição em si ou se as pessoas que a ela assistem. Uma exposição, mais do que especialistas na matéria, tem sempre uma boa dose de curiosos (naturalmente a maioria) e depois uma dose dos que estão lá, mas não sabem ao que vão. Normalmente estes últimos dividem-se entre o ar apressado ente o ar aborrecido. Neste caso em particular, era mais o ar de espanto. 


O que é interessante, é que pelo modo como as pessoas olhavam e/ou pelo ar repulsivo (ou não) que faziam às obras mais chocantes, é tão perceptível perceber o que lhes vai nas almas e saber de onde são, o que são e para onde vão.



segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

do Charlie e dos outros

E agora que já fomos todos Charlie e que outros deixaram de ser Charlie para ser outra coisa e depois de afinal percebermos que não somos tão Charlie assim (que isto de andar “à chuva” é duro e pode fazer comichão)  podemos então voltar às nossas vidas com a graça de nosso senhor, que isto dos problemas do mundo é muito bonito, mas é muito melhor se vivermos aqui no nosso cantinho e deixemo-nos cá de preocupações e coisas dessas com o resto e com as cenas dos povos e dos que se dizem vítimas, que isto da vida são dois dias e três dura o SBSR (e vamos ver se há bilhetes, que isso de crises é só lá longe onde pessoas matam outras, que brutos).